Um estudo desenvolvido a partir da Universidade de Coimbra com bombeiros da região pode ter resultados práticos em todo o país. A equipa está pronta aplicar um conjunto de ferramentas que passam por apoio psicológico e treino com jogos de realidade virtual

Avulnerabilidade dos bombeiros ao stress é grande e podem sofrer de situações pós traumáticas idênticas às enfrentadas por quem esteve em cenário de guerra.

É pelo menos o que acredita Miguel Castelo-Branco, professor catedrático da Faculdade de Medicina, e o responsável por um estudo que avalia o impacto da atividade dos bombeiros na sua saúde mental e cujos resultados acabam de ser revelados pela equipa que o desenvolveu, a partir da Universidade de Coimbra (UC).

Miguel Castelo-Branco, que é responsável pelo CIBIT (Coimbra Institute for Biomedical Imaging and Translational Research), acredita que os primeiros resultados podem ser uma importante ferramenta para mudar o rumo do que considera "o impacto semelhante ao de uma guerra, no que respeita ao stress pós traumático".

"Quando falamos em stress pós traumático é a exposição à adversidade, a situações em que eles têm que tomar decisões extremas, e verificámos que cumulativamente estão expostos a eventos potencialmente traumáticos. Estamos a falar de crianças em perigo, de colegas em perigo, é uma população vulnerável porque a grande maioria tem uma exposição maciça a estes eventos. A vulnerabilidade ao stress é muito grande", afirmou ao DN, depois de um webinar que reuniu bombeiros, famílias, mas também parte da equipa que desenvolveu este estudo: João Redondo, psiquiatra e responsável pelo Centro de Prevenção e Tratamento do Trauma Psicológico; João Rodrigues, da Administração Regional de Saúde do Centro, e Vítor Rodrigues, professor associado da Faculdade de Medicina.

Miguel Castelo Branco acredita que o nível de exposição dos bombeiros a eventos traumáticos é muito semelhante ao de uma guerra. E essa é uma lacuna nos cuidados de saúde, que a equipa acabou por confirmar. O investigador revela que, depois de tornados públicos os primeiros resultados, "muitos bombeiros já entraram em contacto connosco, agradecendo a sensibilização para este problema".

O estudo é inédito, a vários níveis. No campo neuro-científico, por exemplo. A preocupação é também "dar ferramentas aos bombeiros a nível de intervenção", sublinha Miguel Castelo-Branco.

A parte mais científica do estudo começou há um ano, mas há uma parte clínica que já vem de trás, a cargo do psiquiatra João Redondo. A amostra, nesta primeira fase, foi constituída por 283 participantes, na sua maioria bombeiros da região de Coimbra. A equipa que desenvolveu o estudo reuniu "uma caracterização bastante precisa das famílias, dos anos anos de serviço, do tipo de vínculo".

Entre as conclusões, percebe-se como a esmagadora maioria (83%) "já foi exposta a mais de 20 acontecimentos traumáticos", revela Miguel Castelo-Branco, lembrando que outras pessoas, com outras profissões, "presenciam acontecimentos-limite uma ou duas vezes", ao contrário dos bombeiros.

Criar um circuito de acompanhamento
A equipa acredita que este estudo pode dar contributos a vários níveis, até pela múltipla participação do conjunto de entidades aqui envolvidas. "Acredito que é possível criarmos um circuito de acompanhamento de bombeiros, que podem contactar connosco e nós sinalizamos e encaminhamos. Por outro lado, temos para lhes dar ferramentas de treino para a tomada de decisão", adianta Miguel Castelo-Branco.

"Imagine o que é um bombeiro, perante uma casa em chamas, com pessoas lá dentro, em frações de segundo tem de calcular a probabilidade da casa ruir, salvar as pessoas, é tudo muito rápido".Para mais, "é sabido, até ao nível neuro-científico, que uma pessoa que tem um stress pós traumático decide pior". E a ideia é precisamente atuar na prevenção, evitando o ciclo vicioso. Desse rol de ferramentas fazem parte o acompanhamento psicológico e exercícios de realidade virtual para treino, "para eles perceberem que nessas frações de segundo há um diálogo entre a razão e a emoção. É o que chamamos vulgarmente "manter a cabeça fria"", conclui o investigador.

Depois da amostra concentrada na região de Coimbra, o objetivo é abrir este estudo a todo o país. De resto, todas as ferramentas estão pensadas para isso, bastando para tal que os bombeiros interessados entrem em contacto com o DECFIRE (o nome atribuído ao estudo) através do e-mail decfireUC@gmail.com

Iniciado em janeiro de 2020, o estudo tem como parceiros o Centro de Prevenção e Tratamento do Trauma Psicológico, CRI de Psiquiatria - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), a Administração Regional de Saúde do Centro (ARSC, IP) e a Federação dos Bombeiros do Distrito de Coimbra, e é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. A ideia base é explorar "os processos cerebrais envolvidos na tomada de decisão crítica em condições extremas de combate a incêndios e a forma de melhorar a tomada de decisão nessas situações". E esses processos, clarifica, "são estudados através de eletroencefalograma e imagem por ressonância magnética funcional, mas também com recurso a ambientes de realidade virtual. Foram desenvolvidos simuladores específicos para o projeto, capazes de simular de forma realista situações de combate a incêndios. Deste modo, os participantes no estudo são expostos a cenários de situações de tomada de decisão desafiadoras, mas realistas, o que nos permite estudar a perceção de risco e o controlo emocional em situações extremas".

"O domínio do fogo florestal é bastante diferente de outros cenários de emergência em termos de cenários operacionais e fontes de incerteza. Os bombeiros precisam da capacidade de treinar situações e cenários inerentemente inseguros e difíceis de reproduzir, ou impossíveis devido a restrições ambientais, comunitárias e regulatórias", justifica.

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